DOUTOR EM ACENO








Num reino distante, o rei havia mandado seu filho ao estrangeiro para que estudasse e aprendesse muitas sabedorias.  Após diplomar-se em diversos saberes, incluindo a comunicação por sinais, o moço voltou para sua terra natal, onde foi exaltado e aclamado como Doutor em Aceno.  Com a notícia da chegada do filho, o rei mandou preparar um grandioso banquete, numa festa repleta de ilustres convidados, escolhidos a dedo para a ocasião.  Além das autoridades, intimaram o rapaz mais sabido daquele reino para se medir com o filho do rei. Não havia nada de reconhecimento no tal convite a não ser enaltecer o Doutor. No dia do da festa, os lugares foram distribuídos de forma que o moço tomasse assento à mesa em frente ao príncipe. Ocorre que, faltando poucas horas para o evento, o tal moço foi acometido de uma terrível dor de barriga. Medo puro. O que fazer?

Por sorte, ou por azar — vamos saber daqui a pouco —, ele tinha um irmão gêmeo. Cara de um focinho do outro, como lá dizem. Na família, o pobre rapaz atendia pela alcunha de Doido. E, para se safar da vergonha, o sabido mandou o irmão Doido em seu lugar. O rapaz chegou ao palácio quando estavam todos tomando assento e foi encaminhado para o local reservado para ele: em frente ao maioral em sabedoria.

Almoçaram, do bom e do melhor e, depois do cafezinho, enquanto aguardavam o licor digestivo, o rei pediu que todos fizessem silêncio. Chegara afinal o grande momento: a demonstração de superioridade pelo Doutor de Aceno. Toda a atenção da audiência agora estava voltada para a interação entre os dois grandes rivais. Eis que o Doutor olhou para o Doido e levantou um dedo.  O Doido mirou nos olhos do Doutor e levantou dois dedos. Em seguida, o Doutor levantou três dedos, e o Doido, num movimento brusco, fechou a mão e ergueu o punho.

Naquele momento, ouviu-se uma estrondosa salva de palmas. Jornalistas e curiosos cercaram o Doutor para saber o conteúdo do diálogo entre ele e seu interlocutor.  O Doutor não se fez de rogado:

—  Olhe, fiquei feliz, pois trata-se de um homem que, além de sábio, está atento aos preceitos religiosos.

— Mas qual o teor do que foi dito nos acenos?

Empostando a voz, o Doutor esclareceu:

— Ora, eu levantei um dedo em louvor ao nosso único e verdadeiro Deus-Pai! Ele, sabiamente, levantou dois dedos, destacando a presença de Jesus, o Filho. Foi nesse momento que, percebendo o seu apreço pelo Providência Divina, levantei três dedos, invocando a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo. Ele ergueu o punho aos céus para dizer que as Três Pessoas são a essência de Deus.

Mais uma vez, o Doutor foi aclamado com outra salva de palmas.

Os curiosos agora voltavam suas atenções para o outro lado da mesa. Quando alguém indagou do conteúdo do “diálogo”, o Doido respondeu:

— Diálogo uma pinoia! Esse homem é muito é grosseiro. Veja só, nem bem termina o almoço, ele vem com um dedo ameaçando furar meu olho. Pois bem, armei logo dois dedos contra os olhos dele e o desafiei: vem! Não é que o peste arma três dedos, querendo acertar meus olhos e enfiar um na minha boca! Pois bem, eu disse para ele que, em resposta, levaria um soco nas fuças.

E ficou o dito pelo não dito.

Da festa eu trouxe três pedaços de bolo, mas, quando passava no Escorrega-lá-vai-um, levei o primeiro escorregão; lá se foi um pedaço. Andei mais um pouco e novamente escorreguei; lá se foi o segundo pedaço. Depois, como não escorreguei mais, trouxe o último pedaço para... você!

Fonte: Pedro Monteiro, São Paulo (SP).

Proveniência: Campo Maior, Piauí.

 

Classificação: ATU 924 (Discussão em linguagem gestual)

São raros os registros deste conto em Portugal (duas versões) e no Brasil (quatro se contarmos o subtipo B). O conto, no entanto, vagueia pelo mundo há pelo menos 25 séculos, como dá a entender o relato, que hoje soa como uma anedota, de Heródoto, sobre os presentes que os reis citas enviaram a Dario I, soberano persa, que, perigosamente, se aproximava de suas possessões. O arauto entregou ao famoso monarca um pássaro, um rato, um sapo e cinco flechas. Inquirido pelos persas sobre o significado de tão estranhos presentes,  o mensageiro desculpou-se, afirmando que sua missão era tão somente entregá-los. O rei Dario, adiantando-se, argumentou que os citas estavam se rendendo, pois lhe ofereciam terra e água. Trocando em miúdos: o rato nasce na terra e come o mesmo que os homens, o sapo vive na água, um pássaro se assemelha a um cavalo e as flechas eram símbolos de poder militar. Um conselheiro do rei não concordou e deu uma explicação mais convincente: se os persas não se tornassem pássaros e voassem para o céu, ou imitassem ratos e se enterrassem no chão, ou sapos e pulassem nos lagos, nunca mais voltariam para casa, e morreriam varados por flechas (Cf. Graham Anderson, Ancient Fairy and Folk Tales: An Anthology. New York, Routledge, 2019, cap. XII).


                                 Classificação: Poeta e Pesquisador Marco Haurélio.

 

















 


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